100 anos depois da revolução russa

Na curva da estrada que antecede o Palácio de Inverno, uma mota passa a baixa velocidade e faz desviar os olhares da horda de turistas que se dirigiam ao Museu Hermitage. Não era o modelo que suscitava interesse, nem o condutor, nem a ousadia de andar de mota na tarde gelada desta segunda-feira. Era uma enorme bandeira da União Soviética que flutuava na sua traseira. Os que atravessaram a estrada para a praça do museu puderam ainda ver operários a desmontar as telas do espectáculo multimédia que nas duas últimas noites comemorou os 100 anos da Revolução Russa. Mas, quer os cinco milhões de habitantes da segunda maior cidade da Rússia, quer os milhares de turistas que recebe todos os dias tiveram poucas oportunidades para constatar que, naquele belíssimo palácio barroco habitado pela família imperial depois de 1732, ocorreu há um século um assalto que se tornaria um dos mais emblemáticos episódios da História do século XX.

Na tarde de 25 de Outubro (do calendário juliano, 7 de Novembro no nosso calendário), uma pequena multidão de soldados e operários foi-se acumulando em frente à enorme praça em frente do Palácio. No rio Neva, a canhoeira Aurora, comandada pelos marinheiros da base de Kronstad, aguardava instruções. Mais longe, da fortaleza de Paulo e Maria, uma prisão que simbolizava a opressão do regime czarista, ocupada pelos bolcheviques dois dias antes, haveria de se acender uma luz vermelha que daria início ao assalto. A barafunda entre os revolucionários era enorme – não havia sequer uma luz vermelha para acender. A expectativa também.

A escassos quilómetros de distância, no Instituto Smolny que era o quartel dos bolcheviques, Lenine ardia em fúria com os atrasos. “Parecia um leão numa jaula”, recordaria um dos presentes. Finalmente, às seis e meia da tarde, a operação foi lançada com um ultimato para que os ministros do Governo Provisório se rendessem. Não se renderam e o palácio foi tomado de assalto. Dez anos mais tarde, o cineasta Serguei Einsenstein recriaria a operação com actos de abnegação, de coragem e de heroísmo. A verdade histórica, porém, é bem mais cínica. Boa parte dos soldados que defendiam o Governo começaram a desertar à hora do almoço por falta de comida. Para lá de alguns disparos, o Governo de Alexander Kerensky instalado no Palácio caiu como, meses antes, em Março, tinha caído o regime dos Romanov: por inércia. “Faltou tudo a Kerensky. Faltou força de vontade, faltou apoio público, faltou profissionalismo”, diz o historiador Konstantin Mogilevskiy, da Sociedade Histórica da Rússia.

Quem andar por estes dias nas ruas de São Petersburgo tem dificuldade em fazer a ponte entre a normalidade festiva dos fins de tarde e a memória vazia de uma revolução que deixou a cidade em estado de sítio. Ainda mais do que em Moscovo, a capital da Rússia em 1917, que na altura se chamava Petrogrado, esforça-se por apagar o que foi e viveu há um século e, ainda mais, o significado dessa existência e dessa experiência. O Hermitage tem duas exposições dedicadas à revolução, os teatros recriam episódios da época. Mas, nas ruas não há um, um só sinal de que ali germinou um sonho de uma sociedade sem classes que mobilizou milhões de seres humanos em toda a Europa e um pesadelo que condenou países inteiros a regimes totalitários e dezenas de milhões de pessoas à perseguição política, ao Gulag ou às fomes forçadas. “No início deste ano ainda esperei que houvesse mais conferências, mais programas de televisão ou mais debates. Não houve, e é pena. Porque é importante que fôssemos capazes de voltar a discutir todos os pontos de vista sobre o que aconteceu”, lamenta Irina Dmitrieva, uma estudante da Universidade de São Petersburgo.

O silêncio tende a apagar a memória e a rotina leva os habitantes da cidade que entre 1924 e 1991 se chamou Leninegrado a não pensar no sentido dos nomes das suas estações de metro, dos seus bairros, das suas avenidas ou sequer a proliferação de estátuas e monumentos que resistem como que a provar que, o que aconteceu ali há 100 anos, não se apaga por omissão. Durante oito meses, entre 8 de Março e 8 de Novembro, a cidade que na altura tinha 2,4 milhões de habitantes (era a quinta maior cidade da Europa), viveu em permanente estado de sítio. A Primeira Guerra Mundial agravara as condições de vida de uma classe operária recentemente atraída pela industrialização, a fome alastrara, em cada divisão viviam três pessoas. Depois de Fevereiro, as donas de casa, os operários e os soldados responderam aos seus problemas tomando o poder da rua para daí assaltarem o poder dos palácios. O czar resignaria em Março (Nicolau II e a sua família seriam barbaramente assassinados a 17 de Julho de 1918 pelos bolcheviques) e desde então a governabilidade oscilava entre a rua entregue às “massas” e o poder formal entregue a mencheviques, socialistas radicais e, transitoriamente, constitucionalistas democratas mais à direita.

O Palácio Tauride, a escassa distância da Avenida Nevsky que serve de espinha dorsal ao corpo da cidade, tornou-se o exemplo dessa divisão de poderes. Essa casa senhorial onde hoje funciona a Assembleia da CEI (Comunidade de Estados Independentes, que reúne alguns dos antigos países da União Soviética) estava inicialmente ocupada na sua ala direita pelos representantes da velha Duma do regime czarista e pelos membros do Governo Provisório liderado até Julho pelo príncipe Lvov, uma figura que o historiador britânico Orlando Figes diz ser “um dos numerosos personagens da história da Rússia que parece ter escapado de um romance de Gogol ou de Dostoyevsky”; e na ala esquerda o Soviete dos Operários e Soldados de Petrogrado, que decreta como a sua primeira “ordem” a obediência dos militares ao Soviete e não ao Governo.

O vazio de poder foi um ecossistema ideal para o florescimento do radicalismo bolchevique. Enquanto as outras forças de esquerda esperavam o desgaste de um governo burguês para depois avançar para o socialismo, Lenine escolhia como modelo para a transição a tomada do poder e destruição da ordem burguesa através de uma ditadura do proletariado. Quando chega do seu longo exílio de 17 anos, proclama: “Todo o poder aos Sovietes”. Ninguém o levou a sério. Com a passagem do tempo, com a instabilidade na economia e a degradação da moral e disciplina do Exército na frente a tornarem-se ingeríveis, o Governo de Lvov perdeu o pé. No caos de São Petersburgo, não se sabia quem mandava em quem e no quê. Nos dias 3 e 4 de Julho, grupos militares associados aos bolcheviques instalaram metralhadoras na avenida Nevsky, deram ordem de prisão a ministros e ameaçaram o Soviete de Petrogrado. Os líderes bolcheviques recearam ser esmagados pelo Exército e recuaram.

A ameaça ficaria como aviso, apesar do custo para Lenine e seus pares. Uma vaga de repressão foi lançada pelo Governo com forte apoio das classes médias. Até Máximo Gorky, uma celebridade internacional na época e insuspeito de ser conservador, escreveria: “O bolchevismo das emoções, que jogou com os instintos sombrios das massas, feriu-se a si próprio mortalmente”. Lenine é forçado a fugir, de novo, desta vez para a Finlândia. Cerca de 800 bolcheviques, entre os quais Leon Trotsky, que aderira há pouco ao partido, foram presos. Lvov concluíra, entretanto, não ser homem para aquele cargo. Resignou. Numa carta a um amigo, escreveu “A única maneira de salvar o país é fechar o Soviete e matar toda a gente. Eu não posso fazer isso. Mas Kerensky pode”. Kerensky sobe ao poder e, se fazia parte dos Socialistas Radicais, ensaiou uma guinada à direita. Chegou a tentar envolver o comandante-chefe do Exército, August Kornilov, numa solução mais musculada. A meio tirou o tapete ao general, que respondeu com o avanço do Exército. A revolução em curso seria salva pelas forças populares.

A Organização Militar Bolchevique, que se transformaria no Comité Militar Revolucionário, ajuda a salvar Kerensky e ao fazê-lo salva os bolcheviques. Trotsky assume a presidência do Soviete de Petrogrado. A militância não pára de crescer: de Fevereiro para Outubro o partido passa de 14 para 350 mil habitantes. O bairro industrial de Vyborg estava nas suas mãos. A base de Kronstad também. Em Outubro, Lenine pressente que as suas teses estão perto de poder vingar. Não era um homem de combate de rua, mas tinha uma ousadia e uma intuição imbatíveis. Vestia o mesmo casaco de cabedal preto com que os bolchevistas cultivavam um ar másculo e rufia, mas era um intelectual. Nikolai Valentinov, que o conhecera no exílio na Suíça, escreveria nas suas memórias que “ele nunca teria ido para as ruas combater nas barricadas”. O seu radicalismo estava nas palavras. Os bolcheviques “podem e devem tomar o poder do estado nas suas mãos”, escrevia desde a Finlândia. Se o não fizerem, “a história não nos perdoará”.

Máximo Gorky escreveu que “a vida em toda a sua complexidade é desconhecida para Lenine”. O que poderia ser verdade, desde que se excluísse a política da vida. Elena Makeeva é professora de Economia em São Petersburgo e diz que numa das salas da sua faculdade foi colocada “uma velha fotografia de Lenine” pelo seu reconhecimento como um “grande organizador, um grande manager”. Se uma parte do seu partido, com Lev Kamenev destacado, continuava a preferir uma aliança de todo o campo socialista no Governo provisório, Lenine, e Trotsky, advogavam a imediata tomada do poder pelas “massas”. Em Outubro, já depois de regressar clandestino a Petrogrado, vai jogando as suas peças. O congresso dos Sovietes de toda a Rússia está prestes a reunir-se e, quando essa reunião se fizer, os bolcheviques terão de ter já o poder na mão para depois o sufragarem numa assembleia popular que, finalmente, controlavam.

Assim foi. Depois do dia 5 de Novembro, o Comité Militar Revolucionário vai ocupando posições. Alexander Kerensky, não reage e, quando tenta reagir, indo procurar aliados no Exército, é tarde de mais. Às dez da noite do dia 6, Lenine sai do esconderijo e disfarçado com um fato de operário e uma peruca viaja para o Smolni para acelerar as operações. As ruas estão nas mãos dos soviéticos, o Palácio de Inverno é tomado de assalto na tarde seguinte, as massas prendem os membros do governo e saqueiam a preciosa garrafeira do czar - o château d’Yquem de 1847 era a sua colheita favorita. No Soviete, a notícia da tomada de poder é dada e a saída da sala em protesto dos delegados próximos dos Socialistas Revolucionários ou dos Mencheviques não abala quem começa a sentir segurança no poder. Quando se ensaia a possibilidade de uma coligação para governar, Trotsky deixa no ar uma das suas frases famosas: “Sois uns falidos miseráveis, o vosso papel já foi desempenhado; ides para onde mereceis – para o caixote de lixo da História”.

Konstantin Mogilevskiy “afirma que a Revolução é mais uma etapa do processo de destruição do poder antigo”. Mas é uma etapa feita por um processo que, não sendo novo (a Revolução Francesa ou a Comuna de Paris já o tinham tentado), desta vez provou ser suficiente duro para resistir. As suas marcas existem hoje ainda nas ideias, nas ideologias revolucionárias que subsistem, na arte ou na História. Particularmente na de São Petersburgo. A cidade que se quis afastar da revolução precisa talvez de outra revolução para apagar tantas estátuas, tanta toponímia, tantas estrelas incrustadas nas casas, nas pontes ou nas estações de metro. A crença na utopia de 1917 ainda deixa saudades, principalmente aos russos mais velhos. Mas também aos jovens. Como aquele que, de mota, se fazia passear pelas ruas da cidade sugerindo que a revolução que defende, por ser permanente, continua na curva seguinte da História.
 

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